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terça-feira, 27 de dezembro de 2011

CONTRIBUIÇÃO DO INTERNAUTA: Texto antigo sobre Lavras do Sul, gentilmente cedido por Jonatan Souza

Trecho do livro “Paisagens do Brasil”, autoria de Virgínio Santa Rosa (biografia abaixo). A grafia original foi preservada.

A Villa de Lavras é uma das mais feias e lúgubres do Rio Grande do Sul. Ergue-se sobre uma pequenina coxilha a cavalleiro do arroio – um dos formadores do Camaquan – que lhe corre a sopé, cingindo-a apertadamente como um fosso. Cercam-na, em anphitheatro, outras coxilhas mais altas, barrando-lhe todo o horizonte. As suas ruas, ladeirentas e pedregosas, são ladeadas de casas acaçapadas e vulgarissimimas – como nas demais cidades do interior brasileiro – de paredes escalavradas e desaprumadas. E a falta de uma praça larga e festiva, cheia de sombra e falta de frescura, como que fecha inteiramente a vida local, encerrando-a nas habitações, confinando-a no seio de cada uma das famílias dalli e retratando a inexistencia do espirito de comunhão e hospitalidade.

Todavia, áquelle que nella entra pelo sul vindo do entroncamento ferro-viario de S. Sebastião, assalta-lhe impressão bem differente: o villarejo soergue-se risonho e brilhante, em plena claridade da manhão, offuscando com mil scintilações dos raios solares nos muros embranquecidos de cal. A argilla dos tectos faisca como enormes manchas pardoavermelhadas no verde das encostas. E a torre da igrejinha, de um gothico-romano achamboado, mesmo entre os vultos esguios dos alamos verdejantes, ostenta certa majestade e elegancia.

Essa impressão agradavel dilata-se sobremodo com a contemplação da natureza em roda. O olhar, fatigado da monotonia dos plainos nús, das chapadas ondulantes e dos largos taboleiros, descança em paysagens ligeiramente differentes. A transformação é pouco sensivel, mas isso basta para quebrar a melancolia dos pampas e aligeirar o espirito do observador de um panorama cheio de chatezas e ondulações verdes e que já lhe enfara pela uniformidade. Enrugou-se um pouco mais o solo, resaltando o dorso das coxilhas e a vegetação, em outras zonas rarefeita e esparsa, adensou-se alli em moitas espessas e multiplicadas por toda a extensão dos campos. É um flora rachitica de arueiras e espinheiros, crescendo entre blocos graniticos e, de raro em raro, dominada por uma canelleira ou por um taruman frondoso.

Esse novo aspecto da terra gaucha é, porém, muito mais saliente ao nordeste do povoado. Alli, em remotíssima éra geologica, de um cone vulcanico já desapparecido, rolaram grossas torrentes de lavas, soterrando as immensas Lages de granito. A erosão, millenarmente, escavou esse chão durissimo em canhadas estreitas e fundas como cannyons, accentuando a physionomia convulsa dos cerros.

Nesse scenario granitico, acompanhando os derrames das lavas andesitas, na época dos tremores e fendilhamentos da terra, os veios de quartzito vieram a encher as rachaduras do solo, trazendo consigo a riqueza aurifera. Os homens já arranharam a crosta daquella terra trituraram os grandes blocos de pedra, deixando vastas cicatrizes que o tempo mal consegue apagar da face dos campos. Companhias extrangeiras, emigrados das revoltas das republicas platinas, estancieiros e peões, todos elles, com machinismos, a picareta ou a bateia, já procuraram colher o ouro farto que tudo promette e pouco dá em troca dos esforços.

***
Amanhecera o sabbado de Alleluia. Quando a povoação accordou, um Judas já estava necostado ao poste, numa esquina. Appareceu amarrado alli, inesperada e silenciosamente, como se fosse cahido do céo. Quem o collocou alli?... É inutil procurar saber: é segredo dos iniciados. Amarraram-no naquelle poste ás occultas, ás caladas da noite. Debalde, será qualquer vilança ou espreita para desvendar os autores da pilheria. Ninguem consegue apanhá-los. Agem sorrateiramente, quasi embuçados, cozendo-se ás paredes, inteiramente disfarçados na meia claridade do villarejo, no lusco-fusco das ruas. Elles deixam o pobre Judas na esquina e desapparecem como figuras de intermezzo.

Sempre foi assim, nos sagrados costumes da povoação. E lá ficou elle, o Judas, rijo e duro, coberto de andrajos, com um velho chapéo sobre os olhos. Não é um Judas qualquer, sem feições e personalidade. O seu autor teve caprichos de escriptor e pintor em dar-lhe forma e retratar-lhe a physionomia. E até nas roupas elle se esmerou, exigindo em todos os detalhes uma logica na semelhança, uma parecença facilmente denunciada á primeira vista. Fulano bebe?... Não tenha a menor duvida que cedo ou tarde o seu Judas, pesado e trôpego, amanhecerá numa esquina, tendo uma garrafa na mão e tentando levá-la aos labios. Beltrano joga?... Espere tambem pelo seu dia que o escriptor e o pintor anonymos crearão o seu Judas com o baralho na mão para conhecimento e escarneo de todos. Sicrano roubou?... Ninguem respeitará o silencio que se fez em torno do seu crime e, muito em breve, num sabbado de Alleluia, a sua culpa será ostentada escandalosamente aos olhos da cidade inteira. É a policia dos costumes locaes, a satira muda e impiedosa. O povo, naquelle Judas, apedreja annualmente os transviados.

No dia da Alleluia, naquelle povoado pauperrimo do Rio Grande do Sul, o gaucho é um carrasco impenitente. Martyriza impiedosamente. Ataca o seu semelhante com a violencia e a desenvoltura de um pamphleto, desabrida e insidiosamente. Move-o – ora a ansia de uma revindicta occulta, ora a trivial e terrivel vontade de gracejar. E aponta um sêr debil ou orgulhoso ao despreso ou á galhofa de toda a população. Torna-se o instrumento omnipotente de todas as paixões más, dos baixos instinctos sopitados, dos desejos corruptos e recalcados e das vinganças mesquinhas e torpes. O heróe dos pampas, o homem lhano e franco como que perde os caracteristicos hereditarios. Recorre á covadria no doeste, ao anonymato na calumnia. Certo da impunidade, embuçado no numero, perdido na multidão dos outros habitantes o autor do Judas tudo ousa. Revolve em suas mãos uma massa inerte e inoffensiva e transforma-a numa injuria de poltrão. Nesses dias se derramam, condensadas num pobre boneco de trapos, as coleras e perversidades do povoado. Extravazam-se os odios do populacho, as baixezas e miserias do espirito collectivo. O Judas é uma arma terrível na mão do poviléo. Denunciado o crime, perpretada a infâmia ou assacada a calumnia, o pusilanime ri e gargalha. E com elle ri e gargalha toda a gente.

Ao raiar do sol, no sabbado alegre e fstivo, a villa se movimenta. Desde cedo começa a correr de boca em boca o nome do Judas. Amigos e inimigos riem e se regozijam entre si. E todas saem de casa, matinalmente, para contemplar o boneco plantado na esquina. É um desfilar de olhares maliciosos e approvações tacitas. Alguns sorriem intimamente satisfeitos com a humilhação alheia. Outros, mais hypocritas, murmuram mollemente: - “Isso não se faz!”. E tambem se afastam intimamente satisfeitos ruminando o seu gozo.

De súbito repenicam argentinamente os sinos no ar claro da manhã. Rompeu a alleluia. Atroa nos ares um alarido infernal: a molecagem salta e grita, cercando o Judas num enthusiasmo de batalha. A volupia da destruição accende fegulhas mais vivas nos olhos dos meninos e já os cabellos do boneco agitam nos seus pulsos ageis. Não há ordem nem ha tactica. O assalto é furioso e illogico. Uns atiran-lhe pedradas, outros amassam-no á porrete. Sovam-no. Estraçalham-no. Quando está bem sovado e estraçalhado arrastam-no pelas ruas em ruidoso cortejo. Á frente, duas ou tres latas velhas, valentemente batidas, chamam gente ás janellas. E o pobre Judas vae sendo arrastado, mostrado e exhibido a todas as familias do logarejo. Por fim a creançada já exhausta, abandona-o a um canto. E alli fica o pobre Judas, desconjuntado e desmembrado, á mercê dos ponta-pés dos que passam. Com aquelle dia acaba o interesse pelo Judas. E daquelle gracejo ou daquella vingança brotarão muitos outros gracejos e muitas outras vinganças.

***
Na tarde seguinte acabei de descobrir Bagé...


Virgínio Marques Santa Rosa
nasceu em Belém no dia 2 de abril de 1905 e faleceu em 2001, no Rio de Janeiro. Filho de Emílio Américo Santa Rosa e de Tharcila Pinto Santa Rosa. Seu pai foi desembargador. Cursou o Instituto Nossa Senhora de Nazaré, em sua cidade natal, e o Instituto Lafayette, no Rio de Janeiro, então Distrito Federal. Formou-se engenheiro ferroviário pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro em 1927, passando a trabalhar em sua especialidade. Filiou-se à Liga de Defesa da Cultura Popular, também chamada Centro de Defesa da Cultura Popular, criada no Rio de Janeiro em abril de 1935 como um movimento político ligado à Aliança Nacional Libertadora. A liga tinha por objetivo principal estabelecer a aproximação do trabalhador manual com o trabalhador intelectual. Com a instalação do regime do Estado Novo, em novembro de 1937, foi fechada e muitos de seus integrantes foram presos. Após a extinção do Estado Novo (29/10/1945), Santa Rosa elegeu-se, em dezembro de 1945, suplente de deputado pelo Pará à Assembléia Nacional Constituinte na legenda do Partido Popular Sindicalista (PPS). No pleito de outubro de 1950 obteve um mandato na Câmara dos Deputados na legenda da Coliga-ção Democrática Paraense, integrada pela União Democrática Nacional (UDN), o Partido Libertador (PL), o Partido Social Trabalhista (PST) e o Partido Social Progressista (PSP), ao qual era filiado. Tomou posse em fevereiro de 1951 e, reeleito em outubro de 1954 na legenda do PSP, tornou-se vice-líder do partido na Câmara em junho de 1957. Findo o seu mandato em janeiro de 1959, não mais retornou à Câmara dos Deputados. Em sua carreira de engenheiro, integrou o Serviço Geológico e Mineralógico do Ministério da Agricultura, servindo no Setor de Carvão de Pedra e Petróleo. Chefiou a construção da Estrada de Ferro Maricá (RJ) e dirigiu as ferrovias Belém-Bragança (PA), Tocantins (PA), São LuísTeresina e Goiás, integrando os quadros do Departamento Nacional de Estradas de Ferro. Foi ainda diretor administrativo da Companhia Nacional de Seguro Agrícola. Casou-se com Dinah Lemos Santa Rosa, com quem teve um filho. Publicou: A desordem (ensaio, 1932), O Sentido do Tenentismo (ensaio, 1933), Paisagens do Brasil (viagens,1933), A estrada e o rio (romance,1964) e Dostoiewski, um Cristão Torturado (ensaio lítero-biográfico).


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